O mundo é gay
(e você está nele)!
De uns anos pra cá, os quadrinhos têm saído do armário. Personagens gays de diferentes importâncias surgiram, ao passo que outros – mais conhecidos do público – tiveram sua preferência sexual alterada para os tempos modernos. Só pra ilustrar, recentemente foi anunciado o (suposto) primeiro transexual dos quadrinhos (Alysia Yeoh, colega de quarto de Barbara Gordon, a Batgirl); o título do Superman escrito por Orson Scott Card foi cancelado devido ao ativismo de seu autor contra os direitos gays; a venda de um título foi bloqueada pela Comixology como resultado da questão GLBT; casamentos gays foram anunciados; e um Lanterna Verde saiu do armário depois de quase um século de virilidade.
Apesar de todas as reações contrárias ou a favor, olhando mais a fundo descobrimos que o mundo dos quadrinhos sempre foi gay, nós é que não percebíamos (ou não lembrávamos).
Embora seja um bom exemplo do espírito de sua época, o “Boom Gay” chama mais atenção pela quantidade do que pela originalidade. Afinal, apesar de ser mais uma tentativa das editoras de encaixar a diversidade do momento de forma extremamente chamativa – e por vezes desnecessariamente polêmica – em suas páginas para vender mais gibis, não é nenhuma novidade. Sempre existiram personagens gays, a diferença é que em sua época, e apesar de terem gerado alguns comentários, todos foram inseridos dentro do contexto da história e não como estratégia de Marketing.
A grande verdade é que os gays sempre existiram nos quadrinhos. A própria Mulher Maravilha, criada numa ilha só de mulheres, é um bom exemplo disso. O plano da editora de revelar este detalhe caiu por terra com o surgimento do livro A Sedução do Inocente, deFredric Werthan, que, entre outros danos, acusou Batman e Robinde serem não só um casal gay mas também um caso de pedofilia. Com dois de seus mais importantes personagens queimados para sempre, os editores de quadrinhos foram forçados a ficar na retranca e amenizar seus temas para não “destruir mentes infantis inocentes” (uma das muitas acusações do livro). Em plena caça às bruxas dos anos 50, qualquer movimento contrário ao status quo da época teria assinado a sentença de morte de nossa mídia preferida.
A década de 1960 trouxe uma série de questionamentos e todos passaram a lutar pelo seu espaço. A Rebelião de Stonewall, que culminou na primeira parada pelos direitos GLBT da história, foi um importante passo para a mudança na forma como este grupo passou a ser visto pela sociedade. Não levou muito tempo para que criadores, gays ou não, começassem a testar personagens que revelariam sua sexualidade num momento propício. Nem todos autores tão famosos e ainda atuantes como Gail Simone e Bill Sienkiewicz, mas todos gostariam de se ver representados em sua mídia de escolha. E foi o que fizeram. A partir dos anos 70, fomos conhecendo personagens que, além de gays, ainda protagonizavam ou eram importantes dentro de algum título. Estrela Polar, Flautista, Apolo e Meia Noite, a travesti Dagmar, da série Black Kiss, Hopey e Maggie, da série Love & Rockets, Batwoman, Maggie Sawyer e muitos outros, num processo criativo que começou nas editoras pequenas e migrou para as grandes.
Até acertar, as grandes cometeram erros crassos, como o Estraño, criado em 1988 pela DC Comics numa tentativa estereotipada de incluir duas minorias na mesma história. Além de afetadíssimo, o personagem também era latino. Resultado: o personagem não emplacou e alguns leitores ainda perguntaram quando ele seria curado. Ele não só foi curado como devidamente apagado da continuidade.
Convém lembrar que os quadrinhos (até bem pouco tempo) sempre foram lidos por garotos, o que permite a existência de personagens lésbicas ou polissexuais, como as europeias Barbarela e Valentina, que viviam a liberação sexual dos anos 60. Gays masculinos, entretanto, não faziam parte das fantasias dos leitores, o que impedia a identificação imediata com o personagem. Esse lapso foi corrigido um pouco mais tarde com a inserção de personagens que, apesar de sua sexualidade, são exemplos heroicos ou de anti-heróis que dialogavam com os questionamentos do leitor na época de sua criação. Apolo e Meia-Noite, que não apenas se casaram como adotaram uma criança, ilustram bem como trabalhar dois personagens gays sem que nunca deixem de ser vistos como os personagens mais perigosos de seu universo.
Fora dos Super-heróis, é sempre bom citar o sensível álbum autobiográfico “Pedro and Me”, de Judd Winic, no qual o cartunista conta o que aprendeu durante a convivência com o amigo aidético. Mas estes grandes momentos ficaram restritos aos independentes, onde os autores sempre tiveram mais liberdade criativa. Também é bom citar que a turma da Tina, do Maurício de Souza, ganhou (pelo menos) um personagem homossexual e a ultra conservadora editora Archie Comics conseguiu o feito de ter sido a primeira editora a publicar um casamento gay.
Em 2011, com o evento Novos 52, a DC, que sempre foi uma editora mais conservadora em seus títulos de linha, resolveu atualizar seus personagens para os novos leitores e, identificando que a modernidade havia chegado, decidiu que seria o momento perfeito para introduzir protagonistas GLBT em suas páginas.
Apesar de suas escolhas sexuais não interferirem em sua conduta moral, personagens como o novo Alan Scott chamaram atenção devido a sua nova sexualidade. O Lanterna Verde Gay foi um dos assuntos mais citados na mídia mundial, inclusive no Brasil, onde gerou duas curiosas polêmicas: além do erro cometido por vários programas que comentaram a situação apresentando o Lanterna Verde errado, nosso país, tido como extremamente liberal, foi o que menos aceitou a mudança. Leitores brasileiros fizeram verdadeiras declarações de ódio ao novo status quo, o que chegou a ser citado até no site inglês Bleeding Cool, que passou a dar mais atenção a nosso país a partir do incidente.
Iniciada a era dos Beijos Gays, da qualWolverine e Hercules também participaram, passamos para a fase dos casamentos. O primeiro deles, a resposta da Marvel ao “Boom Gay”, foi o do Estrela Polar com seu então namorado, nas páginas de um dos títulos dos X-Men. Esse matrimônio será seguido pelo de Maggie Sawyer e Batwoman e, numa terceira fase, iniciada em Batgirl 19, foi anunciado o primeiro personagem transgênero da era moderna.
O mundo é gay e os nossos personagens preferidos estão nele. Se isso vai durar ou se será só mais uma modinha, não se sabe. Por enquanto, o fator GLBT parece mais uma muleta polêmica para alavancar as vendas de determinados títulos do que uma declaração de respeito e igualdade. Mas a verdade é que já estava na hora de termos mais inclusão das HQs mainstrean, que quase morreram nos anos 1950 devido a xenofobia americana criada por pequenos grupos e seus representantes que temiam uma mudança social inevitável.
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